Aos sete anos
eu vi meu pai dar um tapa na cara da minha mãe. Não conseguia dormir e levantei
da cama para procurar aquele aconchego que só as mães têm, aquele que nos faz
dormir quando temos sete anos. Abri a porta do quarto dos meus pais e lá estava
ele atritando sua mão enorme no rosto delicado da minha mãe. Ela caiu no chão,
ele gritou. Eu tinha sete anos e não queria que meus pais se separassem. Eu
tinha sete anos e foi a primeira vez que escrevi no caderno de capa vermelha. O
caderno das coisas que não contamos a ninguém.
“Coisas que não conto a ninguém”, eu escrevi
com minha letra grande de sete anos na primeira página do caderno. “Meu pai
bate na minha mãe.” Escrevi na segunda página do caderno. Depois de escrever,
eu abracei o meu pequeno hipopótamo de pelúcia e chorei. Chorei durante uma
meia hora, baixinho, para que ninguém pudesse escutar. No outro dia, quando
acordei, tudo estava igual, como se a noite anterior tivesse sido inteiramente
tomada por um sono tranquilo. Escrever no caderno era esquecer.
Dois meses
depois meus pais se separaram. “Meus pais não se amam mais”, eu escrevi na
terceira página do caderno. “Quanto tempo eles continuarão a me amar?” acrescentei
logo embaixo. Farol, o hipopótamo de pelúcia me olhava com seus olhos grandes e
esbugalhados toda vez que eu tirava o caderno vermelho de dentro do esconderijo
e escrevia o que era segredo. “Farol”. Lembro-me de ter escutado essa palavra
de meu pai quando tinha cinco anos, não sabia o que era mas parecia um bom nome
para um hipopótamo. Um bom nome para o pequeno corpinho roxo e seus grandes
olhos esbugalhados. O único que sabia todos os segredos.
Aos dez anos
eu cheguei da escola e o hipopótamo não estava mais lá na estante. Minha mãe
disse que eu deveria ter esquecido o meu amigo na casa de papai. Eu já sabia
que ele tinha fugido. A essa altura os segredos do caderno de segredos já eram
muitos e muitos e foi demais para o pequeno Farol. “Farol fugiu” eu escrevi
numa das últimas páginas do caderno. Ao lado, coloquei o número dezesseis em
azul. Era assim que eu anotava os amigos que perdia. Junto ao número fiz um
coração. O hipopótamo foi o melhor amigo que tive.
Três anos depois
o número azul já chegava aos trinta e as páginas do caderno chegaram ao fim.
Precisava de outro caderno. Usei um presente antigo, ganhei quando tinha meus
nove anos, era um diário de capa rosa com flores. Mamãe dizia que era saudável
escrever diários. Dessa forma não precisaria mais esconder o caderno. “Esqueci
as coisas esquecidas pela segunda vez”. Escrevi na primeira página do novo
caderno enquanto a velha capa vermelha virava cinzas num prato de cerâmica.
Escrever no caderno era esquecer.
Não me lembro
de tudo que escrevi no caderno e nem deveria. Mas algumas coisas marcam como
ferro quente e você prefere ficar com a lembrança a aguentar a dor de
substituir a pele marcada. Lembro que o caderno de capa rosa durou pouco menos
que um ano. Os segredos a serem esquecidos nessa época eram muitos. As pessoas
demoravam a mostrar suas garras sangrentas, tirar suas máscaras e quando faziam
eram páginas e mais páginas de frases soltas. O número azul crescia a cada dia.
“Não consigo confiar nas pessoas que sorriem” escrevi um dia sobre a professora
que dizia gostar de mim. Ela contou para minha mãe que eu estava chorando no
corredor da escola. Ela mentiu quando disse sorrindo “Vai ficar tudo bem... tudo
bem, não contarei a sua mãe, pare de chorar agora, pronto...”. Nunca entendi
porque as pessoas faziam isso. Sempre falei a verdade. Um dia me disseram que por
isso eu não tinha amigos. Até então o número azul já chegava perto de cem.
Foi estranho
quando aos dezesseis anos eu achei que tudo poderia mudar. Mamãe precisou ir
morar em outra cidade e me levou junto. Meu pai já havia formado uma nova
família. Eu gostava deles. Eles sorriam demais. E meu pai, era o mesmo pai de
nove anos atrás mas escrever no caderno das coisas que não se pode contar a
ninguém, escrever era esquecer. E queimar era esquecer o esquecido.
Com a cidade
nova veio uma escola nova e eu resolvi comprar um caderno novo, na esperança de
que durasse o suficiente para nunca ser trocado novamente. Os cadernos da
cidade antiga estavam enterrados no quintal da casa antiga no formato de
cinzas. O novo caderno tinha uma capa preta e cantoneiras de metal. Era bonito
o suficiente para eu não querer queimá-lo. Um esforço inútil. As páginas
ficaram cheias antes da primavera. “Não consigo fazer amigos.” “Não consigo
olhar para as pessoas nos olhos.” “O cadernos estão tatuados na minha mente,
cada frase solta.” Eu rasguei a página dessa última frase. Não fazia sentido
pois escrever no caderno era esquecer. E esquecer era seguir em frente. Eu
guardei essa última página enquanto meus olhos refletiam as cantoneiras do caderno
de capa preta se sujar de cinzas. Achei irônico os fato das cantoneiras não
queimarem. Você deveria durar para sempre, não deveria?
Eu não
comprei outro caderno depois desse dia. Não estava funcionando. Nunca
funcionou. Os cadernos das coisas que não podemos contar a ninguém estavam
impressos com tinta permanente em cada parte do meu cérebro. Estavam ilustrados
e animados nos meus sonhos e pesadelos mais reais. Escrever no caderno era
agarrar os fantasmas do passado.
Minha mãe
percebeu que as coisas não andavam bem. Ela me contou que sabia da noite em que
eu entrei no quarto dos meus pais. Ela me contou que Farol foi doado um dia
antes de eu perguntar por dele. Ela me contou que a professora havia dito
muitas coisas além do choro. Ela me contou que leu meu diário, aquele de capa
rosa com flores. “Você não pode esconder todas as coisas ruins dentro de você,
assim não sobrará espaço para as coisas boas” ela disse. Foi um dia bom. Foi um
dia ruim. Eu entendi que escrever nos cadernos era esquecer mas esquecer não
significava escrever nos cadernos. Esquecer era não estar escrito em lugar
algum além dos cadernos. Não estar escrito na minha mente, nos meus sonhos, nos
meus amigos, na minha mãe, no meu pai.
Comprei outro
caderno no dia seguinte e sorri para a vendedora. Fiz um colar com as
cantoneiras. Fiz amizade com algumas alunas novas que elogiaram meu colar.
Encontrei um garoto na livraria e fiz um comentário sobre o livro que ele
comprou: não era muito bom. Ele me convidou para um café. Eu vi que as coisas
poderia ser diferentes. Esse garoto se mostrou um pouco chato. “O garoto do
café não gosta de chocolate.” Eu escrevi e esqueci. Talvez ele pudesse ser
legal se eu esquecesse isso. Mas se mostrou ruim em outras coisas assim como a
aluna nova do cabelo vermelho, outras coisas que eu não escrevi no caderno,
coisas que eu não queria esquecer. Viraram ambos um número azul.
Eu aprendi a
seguir em frente. Carregava o passado sujo de fuligem pendurado no pescoço: as
duas cantoneiras de metal. Havia aprendido a escrever no caderno. Escrever no
caderno era esquecer. Mas eu escolhia o que seria esquecido e nem tudo podia
ser apagado. As pessoas poderiam ser como os CDs regraváveis, cujos conteúdos
ruins eram apagados dia após dia e os bons reproduzidos repetidamente, ou então,
poderiam ter conteúdos tão ruins que nada poderia apagar. Para esses não
adiantaria gastar uma página ou duas do meu caderno. Para esses restava o
número azul. Assim, essas pessoas também estavam esquecidas, porque escrever no
caderno é esquecer, mas não os motivos ruins pelos quais decidi esquecê-las.
Pouco ou muito tempo depois elas poderiam se revelar boas pessoas se conseguissem superar tudo o que não havia sido escrito, mas o tempo não faria a menor diferença pois não havia datas no caderno das coisas que não se
pode contar a ninguém. Não havia tempo, nem espaço porque ali dentro o que é
tudo se transforma em nada e se transforma em cinzas. Contudo nem tudo pode
ser esquecido com um simples deslizar de lápis e canetas pois esquecer não é
escrever no caderno. Escrever no caderno, porém, é, definitivamente, esquecer.